CAROLINA MARIA DE JESUS
Projetos desenvolvidos no CIEJA PERUS I com a temática da escritora .
II CONGRESSO INTERNACIONAL PAULO FREIRE: O LEGADO
GLOBAL
RELATO DE EXPERIÊNCIA: ENCONTROS DIÁRIOS COM CAROLINA MARIA DE
JESUS -“QUARTO DE DESPEJO, DIÁRIO DE UMA FAVELADA”.
Tema Gerador: A leitura do mundo precede a leitura da palavra.
COELHO, Sheila F. C.
JESUS, Silvania F.
LEMOS, Bianca D.
MELO, Patrícia S.
RESUMO
Iniciamos o ano letivo de 2017, com as turmas de alfabetização e letramento, dos
módulos 1 e 21, do Centro Integral de Educação de Jovens e Adultos - CIEJA Perus 1
com o texto de acolhida: “Dona Maria tem olhos brilhantes” do livro “A vida que
ninguém vê” de Eliane Brum.
1 O módulo 1 equivaleria ao 1º, 2º e 3º ano (etapa de alfabetização) e o módulo 2 ao 4º. E 5º do Ensino
Fundamental regular
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2 CIEJA Perus, fundado em 2016, é um Centro Educacional voltada à Educação de Jovens e Adultos que,
promove ações educativas, considerando novas formas de ensinar e aprender e implementando um modelo
significativo para o universo dos jovens e adultos, articulando a educação profissional. É reconhecido como um
espaço de aprendizagem, convívio, inclusão, lazer e cultura, bem como um centro de discussão sobre o mundo
do trabalho e cidadania.
3 Em relação ao gênero, será adotada a indicação de Cortella (2011) com a opção pela forma masculina do termo
educando. Não se trata de linguagem sexista e muito menos de sugerir discriminação, mas apenas uma opção
redacional.
4 Para garantir o acesso e a construção dos direitos de aprendizagem, o CIEJA funciona em rodadas temáticas de
aproximadamente 27 dias letivos. Cada rodada possui uma temática central, decidida de maneira coletiva,
contemplando os objetivos específicos do CIEJA.
O motivo do brilho dos olhos de Dona Maria é o mesmo que motiva os
educandos/as3 a esperançar no seu sonho de aprender a ler e a escrever.
A procura de uma leitura significativa, que fosse ao encontro do anseio dos
educandos e dos educadores e que ao mesmo tempo dialogasse com os temas
geradores das rodadas4, optamos por ler o livro “Quarto de despejo - diário de uma
favelada” da autora Carolina Maria de Jesus (1914-1977) considerada uma das
primeiras e mais importantes escritoras negras do Brasil, que foi moradora da favela
do Canindé, zona norte de São Paulo, e que trabalhava como catadora e registrava
criticamente o cotidiano da comunidade, relatando as mazelas da sociedade e dos
indivíduos da favela, em papéis e cadernos que encontrava no lixo. Estas anotações
criativas originaram sua obra mais importante: “Quarto de despejo”.
O trabalho com essa obra possibilitou a atuação pedagógica de maneira dialógica e
democrática, fornecendo elementos para discussão do tema gerador: a mulher e o
mundo do trabalho, além de outros temas sociais, econômicos e políticos que a
autora traz nas páginas de seu diário escrito em meados da década de 1950.
Podemos afirmar que esse movimento pedagógico para a conscientização dos
sujeitos e democratização da cultura objetivou possibilitar aos nossos educandos se
orientarem e agirem no espaço e no tempo, entendendo-se enquanto sujeitos de
direitos.
Um dos fatores que aproxima a autora dos educandos é o fato de Carolina ter
frequentado a escola somente até a 2ª série primária, no interior de Minas Gerais,
ainda na infância. Apesar da pouca escolarização, ela foi capaz de escrever mais de
uma obra literária e sabiamente fez a leitura e denúncia do mundo, ao reconhecer a
favela como o Quarto de Despejo da sociedade.
Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com
seus lustres de cristais, seus tapetes de viludo, almofadas de sitim. E quando
estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de
estar num quarto de despejo. (JESUS: 2014, p.37).
Carolina representa a mulher decidida, guerreira e corajosa que inspira as
“carolinas” do CIEJA Perus, ao mesmo tempo em que, faz de sua obra a voz dos
excluídos posicionando-se perante a uma sociedade restrita a homens brancos e
bem sucedidos.
A leitura cotidiana realizada de forma compartilhada no início das aulas teve como
um dos objetivos a fruição estética da obra literária, que apresenta a realidade dura
e crua no dia-a-dia de uma favela, cuja personagem principal descrita pela autora é
a fome amarela em meio a uma rotina de homens bêbados, mulheres briguentas,
lixo e total descaso do Estado.
Essas abordagens foram realizadas em espaços humanizadores de liberdade
criados, coletivamente, nos quais educandos e educadores partiram da
espontaneidade para o desenvolvimento reflexivo dos temas geradores, realizado
nas rodas dialógicas da sala de aula. A leitura postulou uma dimensão libertadora,
pois Carolina, por meio de sua escrita permite ao leitor também dar seu grito de
liberdade diante a realidade social em que vive, possibilita pronunciar sua própria
palavra.
Nas seções de leitura diária, os educandos passaram por um processo de leitura da
sua realidade, do seu mundo ao mesmo tempo em que aprenderam a registrar, a
grafar palavras e símbolos como a escrita formal exige.
O aprender a ler e escrever, sonho que move os educandos, foi acompanhado pelas
páginas diárias do Quarto de Despejo. Neste sentido “A leitura do mundo precede a
leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da
continuidade da leitura daquela. Linguagem e realidade se prendem
dinamicamente.” (FREIRE, 1997, p.11)
Além da leitura compartilhada do livro e das rodas de conversas, foram utilizados
diversos materiais e recursos para aprofundar a visão crítica dos trechos lidos e
discutidos, tal qual o vídeo baseado na obra literária Quarto de Despejo em
homenagem ao centenário de nascimento da autora (1914) realizado pelos
estudantes da Educação de Jovens e Adultos da EJA da EMEF CEU Vila Atlântica5,
entre outros vídeos e documentários sobre a vida e obra da autora.
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5 Vídeo disponível em https://www.youtube.com/watch?v=8TuEcEB5CcQ, acesso em 16/10/2017
6 Graduado em História – UFOP, mestrando EHPS - PUC-SP
7 O filme narra o encontro imaginário entre João Cândido, líder da Revolta da Chibata, e a catadora
de papel e escritora Carolina Maria de Jesus, autora do livro Quarto de Despejo, em pleno centro do
Rio de Janeiro. É uma dupla homenagem ao trabalho de Zózimo Bulbul e da escritora Carolina Maria
de Jesus. com Zózimo Bulbul e Dirce Thomas. Direção: Luiz Antonio Pilar, disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=73cWnIOfZXM, acesso em 16/10/2017.
Cabe ressaltar o trabalho realizado pelo artista, grafiteiro e professor Emerson Porto
Ferreira6, convidado pelas professoras para a realização de uma vivência cujo
produto final foi uma intervenção artística (grafite) na sala de leitura.
Para realizar a obra que atualmente compõe a sala de leitura, como segue na foto
abaixo, o artista apresentou o curta O papel e o mar7 e o trecho do desfile da escola
de samba Renascer de Jacarepaguá que levou a trajetória da escritora e do
marinheiro à Sapucaí. Após a apresentação dos vídeos foi realizada uma roda de
conversa entre educandos, educadores e convidado, no sentido de criar uma
representação gráfica da visão dos educandos e do artista.
A parte colorida ao fundo veio da leitura do artista plástico (grafiteiro) e as partes em
tinta preta são a contribuição em ideia dos educandos, a interpretação deles da obra
de Carolina Maria de Jesus.
Haverá entre os educandos uma votação para a escolha do nome da sala de leitura,
e Carolina Maria de Jesus é o nome apoiado pelos educandos que fazem parte
desse trabalho.
A obra grafitada na sala de leitura passou a constituir a identidade do CIEJA, de
forma que o espaço passou a ser utilizado para o desenvolvimento de várias
atividades e manifestações artísticas. O painel também foi escolhido para ilustrar o
convite da II Festa Cultural CIEJA Perus I, intitulada festa da cultura popular
brasileira e da oralidade.
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Nessa festa foi realizado um bazar: Boutique Carolina Maria de Jesus, com o intuito
de arrecadar dinheiro para a aquisição de um exemplar do livro para cada educando
que participou do desenvolvimento do projeto. A ideia de realizar o bazar surgiu no
decorrer da leitura, devido a manifestações e o desejo por parte de alguns
educandos em adquirir o livro. Alguns chegaram a pesquisar na internet o custo,
outros solicitaram que os educadores realizassem a pesquisa, outros perguntaram
onde era possível comprar, procuraram nas papelarias e na biblioteca do bairro.
Diante toda essa mobilização os educadores, apoiados pelo conselho de escola,
decidiram realizar o bazar.
O momento próximo do encerramento da leitura do livro despertou expectativa,
curiosidade, além de certo incômodo por não desejar seu fim. Foi mais de um
semestre de leitura, de encontro diário com Carolina, criando uma relação afetiva e
amorosa com a leitura. Isto foi expresso nos depoimentos dos educandos, como:
“Ela escrevia no caderninho, bem simples, mas escreveu. A gente fica imaginando a
vida da gente. A gente tem caderno espaçoso, caprichoso...” “A história da Carolina
ficou marcada, é vida real mesmo. A gente passou a mesma fome. Eu passei fome
no interior e aqui também8.”
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8 Perus, bairro onde se localiza o CIEJA Perus I e a maioria dos educandos. Este bairro fica na região noroeste da
cidade de São Paulo.
Aproveitando esse estado de curiosidade e reconhecimento dos educandos, os
educadores promoveram a participação de todos para a decisão coletiva de um
fechamento. Chegou-se ao consenso da realização de um evento – Chá com
Carolina. Portanto, esse evento de confraternização de encerramento da leitura foi
promovido tanto pelos educadores e educandos, quanto pela equipe da limpeza,
cozinha e gestão, enfim, envolvendo toda a comunidade escolar nesse momento
festivo.
Neste último encontro literário com Carolina todas as turmas dos módulos 1 e 2 do
período da manhã se reuniram na sala de leitura para compartilhar seus sentimentos
e impressões do livro “Quarto de Despejo”. A proposta inicial era para ter um
momento de espontaneidade e partilha, degustação de chás e carolinas, doces e
salgados, além de ler fragmentos retirados da obra para apreciação de um sarau,
por meio de um “balaio da leitura”, além da escuta das canções de Carolina Maria de
Jesus. Alguns educandos não contendo a emoção de um momento tão rico, se
expressaram: “Puxa, professora! A Carolina falou tanto da fome no livro dela... e
agora estamos nós aqui com toda essa comida, tanta fartura...”
O sonho de Paulo Freire, de beleza e fartura conquistadas como direitos e vividas
em comunidade se realiza de mãos dadas com Carolina, que vive agora nos
corações e na alma de mulheres e homens que descobriram dentro de si mais mil
razões para lutar em esperança solidária.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução Paulo Bezerra. São Paulo:
Martins Fontes, 2003.
BENJAMIN, Walter. Sobre arte, técnica, linguagem e política. Tradução Maria Luz
Moita. Lisboa: Relógio D’Água, 1992.
HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In: ______. Identidade e diferença: a
perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. Ed. 8. São
Paulo- SP: Ática, 2014.
FREIRE. Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam.
Edição 23ª São Paulo, editora Cortez, 1989.
________ Pedagogia do oprimido. Ed. 50ª, Paz e Terra, São Paulo, 2011.
________ Pedagogia da esperança: um encontro com a pedagogia do Oprimido.
Ed. 16ª, Paz e Terra, São Paulo, 2011.
________ Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Ed.
53ª, Paz e Terra, São Paulo, 2016.
________ Pedagogia da Tolerância. Ed 1. São Paulo: UNESP, 2005.
FREIRE, Ana Maria A. Pedagogia da Libertação em Paulo Freire. Ed. 1, Paz e
Terra, São Paulo, 2017.
Lançamento do Catálogo "Um Brasil para os Brasileiros
No dia 14 de março de 2023, a JEIF DO VESPERTINO foi no Instituto Moreira Sales (IMS). Os professores prestigiaram o lançamento do Catálogo "Carolina Maria de Jesus - Um Brasil para os Brasileiros".